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A Recursão : A memória e a construção da Identidade



Recursão (ou A Recursão, na edição brasileira) é um thriller de ficção científica escrito por Blake Crouch, autor conhecido por obras como Matéria Escura (Black Matter, título original). O livro mergulha em temas complexos como realidade, memória e identidade, explorando como nossas experiências moldam quem somos e como a percepção da realidade pode ser distorcida.

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A realidade apenas se forma na memória
– Marcel Proust

A Recursão

A trama gira em torno de dois protagonistas: Barry Sutton, um detetive da polícia de Nova York, e Helena Smith, uma neurocientista obcecada em encontrar uma cura para o Alzheimer, doença que afetou sua mãe. A história começa com Barry investigando um fenômeno chamado "Síndrome da Memória Falsa", em que pessoas passam a se lembrar de vidas inteiras que nunca viveram. Conforme a narrativa avança, os caminhos de Barry e Helena se cruzam, revelando uma invenção revolucionária: uma máquina capaz de preservar e até reescrever memórias, permitindo que as pessoas revivam ou alterem seus passados, modificando seu presente e futuro.

No entanto, a tecnologia traz consequências imprevisíveis (nem tanto dado a natureza da tecnologia) e catastróficas. A manipulação das memórias desencadeia uma série de realidades alternativas, criando paradoxos temporais e questionando a natureza da identidade. 

Um ponto a destacar aqui é que Crouch, explora como nossas memórias definem quem somos e como a alteração dessas experiências pode destruir a noção de um "eu" estável. A obra levanta questões profundas, essas mesmas que u me fiz durante a leiura – se nossas memórias fossem apagadas ou substituídas, ainda seríamos as mesmas pessoas? E se a realidade que vivemos for apenas uma entre muitas possíveis?


Identidade e Memória e a Força das Experiências

A identidade, por sua vez, é apresentada como um conceito fluido e instável. À medida que as personagens revivem diferentes versões de suas vidas, elas percebem que suas identidades estão intrinsecamente ligadas às memórias que carregam. Cada escolha, cada experiência, molda quem elas são, e a alteração dessas memórias resulta em versões completamente diferentes de si mesmas. Crouch sugere que a identidade não é fixa, mas sim uma construção dinâmica, constantemente redefinida por nossas percepções e lembranças – Ousado e interessante, a perspectiva que ele usa, alinhando então a estória que ele conta se amarra perfeitamente.

Além disso, o livro explora como a percepção da realidade afeta nossa compreensão de nós mesmos. Quando as personagens são inseridas em realidades alternativas, suas identidades se fragmentam, pois não há mais uma única narrativa coerente para sustentar quem são. Isso reflete a ideia de que nossa identidade depende de uma realidade estável e compartilhada. Sem esse alicerce, o "eu" se dissolve em múltiplas possibilidades, cada uma tão válida quanto a outra.

Judith Herman, em Trauma and Recovery (1992), argumenta que o trauma redefine a identidade, criando uma narrativa interna que influencia como nos vemos e como interagimos com o mundo (HERMAN, 1992).

Crouch também aborda o aspecto emocional da memória e da identidade. As personagens são movidas por traumas, perdas e arrependimentos, e a possibilidade de reescrever o passado torna-se tanto uma tentação quanto uma maldição. O livro sugere que, embora nossas memórias possam ser dolorosas, elas são essenciais para nossa humanidade. Apagar ou alterar essas experiências pode significar perder parte do que nos torna únicos.

O trauma de Barry é central para a narrativa, pois ilustra como as memórias dolorosas podem moldar quem somos. Sua vida é dominada pelo arrependimento e pela culpa, sentimentos que o paralisam e o impedem de seguir em frente. Quando Barry descobre a existência de uma tecnologia capaz de reescrever memórias e alterar o passado, ele vê nela uma oportunidade de redenção. A possibilidade de reviver momentos cruciais e corrigir erros torna-se uma obsessão, refletindo o desejo humano universal de escapar da dor e recuperar o que foi perdido.

No entanto, Crouch não romantiza essa busca. Ao tentar reescrever o passado, Barry é confrontado com as complexidades e paradoxos da manipulação da memória. Cada vez que ele altera o passado, cria uma nova realidade, mas isso não apaga o trauma original. Em vez disso, ele se vê preso em um ciclo de tentativas frustradas de consertar algo que, talvez, nunca possa ser consertado. Isso levanta questões profundas sobre a natureza do trauma: ele pode ser curado através da alteração das memórias, ou é uma parte intrínseca de quem somos?

A identidade de Barry também é profundamente afetada por suas escolhas. Cada vez que ele revive o passado, sua percepção de si mesmo se fragmenta. Ele se torna uma pessoa diferente em cada realidade, mas o trauma da perda de Meghan ou a dor de perder a doutora, permanece como uma constante, mesmo que os detalhes mudem. Isso sugere que, embora nossas memórias possam ser alteradas, o impacto emocional de nossas experiências são mais profundas e difícil de apagar – talvez por isso elas não se vão totalmente. A identidade, portanto, não é apenas uma coleção de memórias, mas também uma construção emocional e psicológica.

Crouch também explora como o trauma pode distorcer nossa percepção da realidade. Para Barry, a linha entre o passado e o presente, entre o real e o imaginado, se torna cada vez mais tênue. Sua busca por redenção o leva a questionar o que é real e se suas ações estão realmente trazendo sua filha de volta ou apenas criando novas versões de uma realidade que ele não pode controlar. Essa ambiguidade reforça a ideia de que o trauma não é apenas uma memória, mas uma força que redefine como vemos o mundo e a nós mesmos.

A tecnologia, tema central do livro, que permite a manipulação e reescrita de memórias, revela que nossas lembranças são mais do que registros do passado; elas são os pilares que sustentam nossa noção de "eu". Cada vez que Barry ou outros personagens alteram suas memórias, suas identidades se transformam. Eles se tornam versões diferentes de si mesmos, dependendo das experiências que escolhem preservar ou apagar. Isso levanta uma questão fundamental: se nossas memórias fossem completamente substituídas, ainda seríamos as mesmas pessoas? A identidade, sugere Crouch, é uma construção frágil, dependente da continuidade e da autenticidade de nossas lembranças.



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