REFLEXÃO SOBRE A AUTENTICIDADE
Ser livre era seguir- se afinal, e eis de novo o caminho traçado.Ela só veria o que já possuía dentro de si.Pág.10
O Que é ser selvagem? E o porquê de se estar perto dele? Talvez nem Clarice soubesse o impacto das palavras escolhidas, desse jogo de tantos significados, desse caleidoscópio de sensações que vão desde a estranheza ao reconhecimento. No fim, estamos tão distantes dessa selvageria, pois passamos a olhar Joana e reconhecer nela nada mais do que a nós mesmos.
Através das pistas deixadas ao longo do texto é possível deduzir que o que Clarice convencionou chamar de SELVAGEM, nada mais é que a essência autêntica de uma pessoa, seu verdadeiro e indomesticado eu, não oprimido ou refreado pelas convenções sociais. Aquilo de mais puro e real na obra, assim, nasceu Joana.
A BUSCA PELA LIBERDADE DE SER
"Tudo o que possuo está muito fundo dentro de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver? Ou tudo o que eu falasse estaria aquém e além da vida? Tudo o que é forma de vida procuro afastar. Tento isolar-me para encontrar a vida em si mesma.”Pág. 18
Joana é retratada como essa pessoa autentica, ansiando por liberdade de ser e de ter uma compreensão mais profunda de si mesma, mesmo que isso a leve a desafiar as expectativas da sociedade ou que choque as pessoas, a sua volta, pois seu interesse está em ser. Ela está em sua jornada particular em busca do que significa existir e ser, o porquê disso e daquilo.
A construção que Clarice faz na obra a torna singular e dentre elas eu gostaria de destacar o Fluxo de Consciência, que foi essencial para mergulhar na mente de Joana. Essa permissão para o leitor de acompanhar os pensamentos e as associações de ideias da protagonista em tempo real, oferecendo uma visão imersiva de sua experiência interior e entender melhor Joana nos aproximou dela, é claro que ainda há uma certa estranheza ao olharmos para a personagem, mas ela é abrandada quando a olhamos com seus próprios olhos e estranhamos as coisas com o seu estranhamento.
Inscreva-se para receber a nossa Newsletter
O uso de Fragmentação Em Eventos, essa forma episódica torna a narrativa fragmentada, com eventos e memórias sendo apresentados de forma não linear. Forma essa que se adequa a própria estrutura da personagem que soa como esse caos, essa desordem os eventos narrados soam mais como algo marcante para a personagem, de acordo com seu grau de importância e sem qualquer relação com a importância cronológica.
O romance é dividido em três fases distintas, cada uma representando uma fase específica da vida de Joana. Essa estrutura tripartida permite a Lispector explorar o desenvolvimento psicológico e emocional de sua personagem ao longo do tempo, desde a infância até a idade adulta. É possível perceber as mudanças de vozes e posturas da personagem, o que a torna viva.
Ser viva a ponto de viver conflitos, muitos deles com seus próprios pensamentos. Ser viva a ponto de desejar, sonhar, construir, refletir… Clarice/Joana, nós visitamos questões profundas sobre identidade, alienação, solidão e a busca pelo significado na vida, além de questões de natureza feminina como a maternidade e o elo com masculino.
Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranquilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma ideia e nada mais.Pág. 58
Devemos ter em mente o contexto da obra, que foi escrito em meados do século XX, publicado em 1943. Período prolífico para do desenvolvimento do existencialismo, que aparece na obra apresentando uma certa Angústia Existencial que é uma característica central da corrente filosófica. Temos essas tais marcas por meio das reflexões e questionamentos de Joana sobre sua própria existência, suas relações com os outros e o significado da vida. Joana frequentemente se sente desconectada do mundo ao seu redor, lutando para encontrar um propósito ou significado em sua existência.
Se tratando de existencialismo, não poderia deixar de citar Camus que absorve esse tema e expande as fronteiras, criando conceitos que se encaixam nesse quebra-cabeça de tal forma que eu poderia ouvir Joana proferir as palavras escritas por ele…
"Posso negar que tudo desta parte de mim que vive de nostalgias incertas, menos esse desejo de unidade, esse apetite de resolver, essa exigência de clareza e de coesão. Posso refutar tudo neste mundo que me rodeia, que me fere e me transporta, salvo o caos, o acaso-rei e a divina equivalência que nasce da anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido e o ultrapassa. Mas sei que não conheço esse sentido e que por ora me é impossível conhecê-lo. O que significa para mim significação fora da minha condição? Eu só posso compreender em termos humanos. O que eu toco, o que me resiste, eis o que compreendo"– CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Página 88.
Joana é essa estrangeira que experimenta do absurdo e que esgota as possibilidades de sentidos que a sua imaginação pode criar sendo fiel a si mesma.
0 Comentários
♡ Compartilhe suas impressões sobre o post ♡