Existem obras que não importa quantas vezes leia, sempre terá algo novo a descobrir. Isso ocorre porque à medida que leitores evoluem, suas perspectivas mudam e tal qual como Heráclito descreve "Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!…", esse paralelo pode ser resgatado e usado na experiência literária tranquilamente, pois a cada nova visita ao rio-livro, a cada nova incursão nas páginas, estas não parecem as mesmas.
Admirável Mundo Novo, foi essa incursão com transformações, tanto eu quanto a obra não somos mais os mesmos de 2020 e as portas da percepção se elevaram a um patamar em 2023 que se difere em tantos graus quanto possível. Se na primeira vez meus olhos se voltaram apenas para a arte e o impacto desse sistema de AMN - vou usar essa sigla para me referir a obra Admirável Mundo Novo, para não ficar tão repetitivo - agora consigo ver algo a mais no poder que mantém esse sistema em pé. A análise mudou de foco e novas percepções ganharam espaço. Mas o que é esse tal de Admirável Mundo Novo?
Admirável Mundo Novo
Em "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, somos transportados para um futuro onde a sociedade é altamente tecnológica, mas profundamente desumanizada. As pessoas são geneticamente projetadas graças ao método Bokanovsky e condicionadas por meio de técnicas Neo-Pavlovianas, tornando-os escravos de seus próprios desejos.
No entanto, ainda existe uma comunidade de "selvagens" que permanece alheia a esse sistema "civilizado", mantendo os valores de uma era passada e totalmente dissociada desse novo mundo tecnológico. Dessa reserva "John," o dito "Selvagem" é retirado e levado a esse Admirável Mundo Novo, lançando uma lente crítica sobre as normas estabelecidas, à medida que explora essa nova realidade, questionando profundamente os valores arraigados e a futilidade em que essa sociedade dirige suas vidas.
Felicidade e Conformidade: Reflexões a Partir de 'Admirável Mundo Novo
- Espetacularização
O personagem "selvagem" em "Admirável Mundo Novo" simboliza uma ruptura com a sociedade altamente tecnológica e desumanizada. A sua existência denota valores tradicionais e emoções profundas, em contraste com a busca incessante por prazer e a superficialidade impressa nessa outra sociedade, que se destaca e domina. Quando é introduzido nessa "Sociedade Fordista", sua autenticidade e intensidade emocional o tornam uma espécie de atração, destacando o quanto os sentimentos e valores do mundo passado se transformaram em mero espetáculo. A dor e a perda, que costumavam ser experiências humanas profundas, agora são tratadas como elementos de entretenimento, sublinhando a crítica de Huxley à busca constante e vazia por prazer na sociedade distópica e suas efemeridades.
O momento da morte de Linda no hospital é um dos momentos que melhor ilustra o peso desses dois mundos, e da distância que possuem, a condição da espetacularização das emoções e a frieza como a sociedade olha o ser humano e encara a morte, enquanto John lida com o desespero, confusão e tristeza e suas complexidades.
Essa dualidade de percepção está presente na obra, impressa em um primeiro momento em Bernard Marx e depois em John, ambos passam pelo sentimento de estranhamento, de desconforto, mas de forma muito pessoal e individualizada. Enquanto Bernard, fruto dessa sociedade, é um alfa, a classe mais alta na hierarquia social do 'Mundo Fordista', a sua dissidência vai além da simples inadequação física. Sua busca por reconhecimento e aceitação reflete sua estranheza e afastamento que ele sente em relação aos padrões impostos, buscando, de certa forma, uma validação dentro da rigidez dessa sociedade que o exclui por que perceber que Bernard é diferente.
Bernard, ao contrário de Jonh, não quer se rebelar, mas sente a necessidade de se encaixar, ser aceito e faz uso, de outro ser humano para se sentir parte da sociedade quando oportuno. É um dos personagens instigantes que prende a nossa atenção e que se destaca como protagonista nas primeiras páginas, é através dele no primeiro momento que olhamos a sociedade, é através da sua ótica que somos apresentados ao "Brave New World"¹ e nos coloca em expectativa para saber seu destino.
Bernard nessa leitura ainda é complexo, com muitas camadas e talvez minha opinião ao seu respeito sofra alterações no futuro de certos conceitos que foram delineados durantes essas leituras.
- Liquidez e futilidade
Ao me deparar com a Soma, minha inevitável pergunta foi "O que é felicidade?" Apenas o que a sociedade (Esse Novo Mundo) decidiu como tal. O cinema sensível, não ter dor, ser parte de um grupo, estar dentro dessa lógica padronizada e o consumo. Não amar, não ter laços ou parentescos, não ter mães, pais e responsabilidade.
Impossível não citar Bauman, conhecido por sua teoria da "modernidade líquida", na qual ele descreve a natureza fluida e volátil das relações humanas e das estruturas sociais na era contemporânea. Em sua análise, Bauman argumenta que as instituições sociais tradicionais, como a família, a comunidade e a religião, tornaram-se menos sólidas e permanentes, dando lugar a relações e conexões mais transitórias. Exatamente o que vemos na obra.
Tudo quanto citam como necessário para esse sistema permanecer se encaixam nessa sociedade descrita por Bauman. Através da liquidez das mentes e das almas é possível o controle total e subliminar, um controle que como foi dito ocorre desde o nascimento, por meio de condicionamento.
- Condicionamento x Liberdade x conformidade
“Condicione as pessoas para que não esperem nada e terá todos felizes com a mínima coisa que você oferecer.”
- Ivan Pavlov
Em "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, o condicionamento clássico ou Pavloviano é uma ferramenta de controle social que se baseia na criação de estímulos e respostas específicas para manipular o comportamento e as crenças dos indivíduos desde o nascimento.
O "pavlovianismo" é usado para criar repulsa condicionada a coisas como natureza, livros e arte, reforçando a conformidade com a cultura e os valores da sociedade, a forma de que é realizada é de certa forma cruel, o condicionamento acontece por meio de choques elétricos e sirenes com o intuito de traumatizar a criança ao encontrar com flores e livros fazendo com que a mente da criança associe tais objetos com sentimentos ruins e os rejeite conforme podemos ver nas páginas 39 a 41, durante a visita aos centros.
Essa abordagem de condicionamento levanta questões sobre como os estímulos são cuidadosamente projetados para influenciar as respostas desejadas, uma manipulação das mentes das pessoas na sociedade fictícia que nos faz analisar a nossa própria sociedade. De forma semelhante, nos algoritmos das redes sociais, recebemos estímulos na forma de conteúdo personalizado projetados para evocar respostas emocionais e comportamentais, influenciando o que os usuários veem e interagem.
Ambos os casos destacam o poder da engenharia comportamental na moldagem da sociedade, suscitando questões sobre autonomia, conformismo e a influência dos estímulos nas respostas humanas.
- Outros Links
Contexto histórico: Em 1932, Franklin D. Roosevelt é eleito presidente dos Estados Unidos. Ele foi fundamental para tirar os EUA da grande crise iniciada em 1929. Em janeiro de 1932, Adolf Hitler concorreu à presidência da Alemanha, mas foi derrotado por Paul von Hindenburg. No entanto, durante o mesmo ano, a situação política instável na Alemanha permitiu que Hitler se tornasse chanceler em 1933, marcando o início do Terceiro Reich.
- Termos presentes na obra:
CASTAS: Alfa, Beta, Gama, Delta, Ômega: Esses são os nomes das castas na sociedade, cada uma com funções e expectativas sociais diferentes. Comunidade Mundial: O nome oficial da sociedade retratada no livro, que sugere uma ideia de unidade global e harmonia, mas que, na realidade, é altamente controlada e conformista. Selvagens: Pessoas que vivem fora da sociedade altamente tecnológica, muitas vezes em áreas não civilizadas. Representam uma ligação com a humanidade e os valores tradicionais. Soma: Uma droga que suprime emoções negativas e induz uma sensação de bem-estar. É uma parte fundamental da sociedade do livro. Bokanovsky: Clonagem humana, produção em série de seres humanos (96 gêmeos de um único óvulo) é um dos principais instrumentos da estabilidade social (pag. 11).
NOTAS DO RODAPÉ:
[1] BRAVE NEW WORD é como o admirável mundo novo é traduzido do inglês.
1 Comentários
adorei, por mais analises como essa na internet
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